quarta-feira, julho 27, 2011

+ HENFIL


     QUARTA-FEIRA, 6 DE JANEIRO DE 1988, DOIS DIAS DEPOIS DA MORTE DE HENFIL,  NO    "O ESTADO DE SÃO PAULO"
“Sangue de barata! Que eu me lembre, o grito da meninada da rua foi o primeiro
sinal que tive anunciando que eu era diferente de todo mundo. Sangue de barata. Ninguém sabia o que eu e os outros dois irmãos, Chico e Betinho, tínhamos. Só sabíamos que o nosso sangue não coagulava. Não podíamos sofrer o menor corte, pois a hemorragia duraria até o final.
Minha mãe, dona Maria, que alguns devem conhecer das "cartas da mãe" que eu escrevia na revista Isto È, não se lamentou duas vezes. Obrigou meu pai a largar uma padaria, um cinema e o cargo de prefeito de Bocaiúva, norte de Minas, e mudou a família sem lenço e documento para a capital. Dona Maria costurava, pintava e bordava para vestir os oito filhos.
Sangue de barata. A mãe sofria humilhação pública (coitada! pobrezinha! que purgatório!) por ter colocado no mundo três deficientes. O filho do czar da Rússia teve o mesmo problema e sabia-se que era doença hereditária, provavelmente iniciada de casamentos consangüíneos na corte da rainha Vitória da Inglaterra. Era a glória: doença do sangue azul! Neste dia, dona Maria enxugou uma lágrima de sofrido orgulho.
Sangue de barata azul! Importante era avisar à professora para pedir aos colegas para tomarem muito cuidado com o coleguinha doentinho.
Proibir futebol, brigas, correrias, escadas, quem me dera o mundo fosse todo de almofadas.
Era hemofilia! No princípio era a transfusão. Aplicava-se o sangue do mesmo tipo de uma pessoa normal na veia de um hemofílico e durante cerca de seis horas a coagulação dele também ficava "normal". Com esta providência abriu-se até a perspectiva de cirurgias em hemofílicos.
 Tudo muito bem, tudo muito bão, mas realmente ninguém esperava pela AIDS.  São os hemofílicos o segundo grupo de risco do mundo. A morte infiltrada justamente no sangue da salvação.
Sangue de barata. E como dói. Às vezes nem a morfina consegue cortar o ciclo da dor.      
Sangue de barata. O preconceito faz com que muitos pensem em eutanásia preventiva: melhor evitar casar com hemofílico. A família da primeira namorada vetou o nosso namoro, porque eu era sifilítico! Já outra namorada descobriu que estava grávida  e resolveu ter o filho para provocar a união. Só sei que estava determinada e decidida a ter um filho nosso. Porém, quando soube que eu era hemofílico, fez o aborto no dia seguinte. E no trabalho? Eu já era conhecido como o Henfil dos Fradinhos quando fui chamado para trabalhar num dos grandes jornais do País. Seu ex-editor é muito conhecido atualmente pelo seu enérgico discurso pelas liberdades. A pedido dele tive que assinar uma declaração desobrigando o jornal de qualquer assistência medica à minha hemofilia. Só assim pude ser contratado e começar a desenhar. Nenhum seguro à vida de um sangue de barata.
Ao duplo sentido da provocação da garotada de rua eu respondia com socos e pontapés. Andava de bicicleta e jogava futebol, era um temido beque daqueles que largam a bola e vão na perna do adversário. Um dia, pulei de um barranco de três metros de altura em cima de um monte de palha, só para provar à molecagem do bairro proletário de Santa Efigênia que eu podia.
Podia levar chutes e pancadas à vontade. Apenas tinha que ficar depois friccionando o local durante horas, uma intuição que evitava surpreendentemente os hematomas. Aos poucos, sempre testando formulas de negar a existência da hemofilia (sou ateu!), passei também a movimentar centenas de vezes a articulação atingida. A bicicleta deixou de ser apenas um veiculo de prazer para virar ginástica de resistência e lubrificação. Para suportar a monotonia dos exercícios repetitivos, me imaginava um atleta se preparando para a olimpíada.
Tinha certeza que só o movimento, muito movimento iria garantir a sobrevivência. A morte para nós não é uma figura de retórica, andamos com ela de mãos dadas, ela é real, palpável. Viver comandado pela dignidade, aliada à raiva e à eterna vigilância. Não relaxar, nunca relaxar. Tensão permanente. Ou fantasia à solta.
Enfim, só aprendi que não vim ao mundo a passeio, mas a negócios. Vejo meu irmão Francisco Mário, um tremendo músico, tocando um violão espantoso nos seus discos independentes. E o outro, o Betinho, que tanto tretou, tanto ralou, que acabou exilado como elemento perigosíssimo para a ditadura militar brasileira. Realmente nosso sangue não coagula!
Mais que a hemofilia, vivi a experiência de preconceitos piores e mais dolorosos. Fui discriminado como 'cucaracha' (barata) nos Estados Unidos. Como árabe na França e como turco na Alemanha. Já tive de provar que não era um maldito 'intelectual' para militantes operários, provar para escritores que um cartunista pode ser escritor, provar que um escritor pode trabalhar na TV e, agora tenho de provar que um homem de TV pode fazer cinema. Minha barba precocemente branca é um insulto para a sociedade dos sempre-jovens, Pinta! Pinta! Corri perigo de vida nestes 20 anos, estigmatizado como comunista, maoísta, esquerdista e agora petista. E pro fim deixo o sufoco maior: cometi a heresia de namorar e casar com uma moça 20 anos mais nova que eu...
                     Hemofilia? Bah!” 
                                                                    HENFIL

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